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"carta aberta à esperança de algo mais"

"copo meio vazio. sinto-me perdida neste meio. há quem diga que quando mais se bebe, mais fácil tudo fica. percebo, mas não apaga tudo. triste. pego no meu familiar vinho branco e preencho as minhas veias com o conteúdo da garrafa que levo à mão. pois copo cheio, pouco paga, pois não sei onde estão os meus amigos, pois não sei se alguma vez os tive. quero ficar bêbada, quero fugir, quero conforto fácil e boa rotina atalhada. deve estar no fundo da rolha. cortiça, por favor leva-me as mágoas. estou sozinha, num mundo de vida. a noite aqui é outra, apagam-se as luzes, acendem-se as almas. de manhã logo se vê, de manhã logo se resolve. cortiça, tira-me estas mágoas, que assim não quero viver. - pinga a pinga, o mundo roda, a cabeça pesa, no entanto estou leve, esta água risonha muda tudo. quero ficar assim para sempre, o mundo dói menos. por favor, suplico a algo inexistente. mas será que somos finitos? capto sons, oiço tudo e nada. um som abafado, no entanto, dá-me teto. reconheço aquela guitarra portuguesa, reconheço aquela voz. podia chorar, estou em casa. sigo aquele lar e entro num bonito bar. olha mas que bem, olha mas que fado. que conforto patriota, lembro-me do meu avô, vou juntar-me a esta voz falecida, vou apreciar a música, vou sentir-me em família, num mundo estranho. - sinto-me a voar o mundo, mas tenho os pés no chão. sei que canto, mas não me esforço para me lembrar das letras. que lindo, as palavras saem sozinhas, nem controlo as minhas cordas. que saudades dele, que saudades de tudo, que saudades de nada. fecho e abro os olhos, quero isto todos os dias. - a música acabou, o mundo está mais calmo, peço mais um copo e aconchego-me a uma parede amiga. observo o mundo, mas não o vejo direito. está tudo desfocado, podia chorar. quero tudo, não quero nada, deixem-me estar aqui ou levem-me para longe. quero estar bem, e mais um copo parece-me a solução, ou não, mas lá terá de ser. - caminho sem levantar os, agora pesados pés, deixo o copo para depois e junto-me a outro assento. observo a garrafa, cada curva daquele rótulo, cada nome da cortiça. há, que me rouba as mágoas. sinto um olhar exterior ao mundo, que me olha com olhos de paz. quem és tu, miúda? será que também queres morrer? será que também bebes para acelerar o processo? cativaste-me. parece um mundo perfeito, de um segundo para o outro. a música está perfeita e olhas para mim. isto é o meu fado, isto é o meu destino. porque estarás tu, aqui? porque olhas para mim? cativaste-me. quero conhecer-te. - procuro ir ao teu encontro e não foges. olhas e desolhas, que jogo mais complexo, mas sim quero jogar. este é o som certo, este é o momento certo. caminho agora certeira, ver-te deu me segundos de lucidez, parece mútuo. cativaste-me. a tua cara fica cada vez mais focada e não tenho nada na cabeça. quero contar-te os segredos do mundo, mas pareces já os conheceres. cativaste-me. palavras não vão lá e este é o som certo. - estendo-te agora a mão e tu aceitas. sinto o conforto quente das tuas nas minhas. cativaste-me e agora é tarde demais. estou agarrada, mas gosto. quero ir dançar. não, não com o mundo, contigo apenas. por segundos, és mais que tudo, quero estar assim para sempre. quero voar contigo. fazes-me querer viver. espero que não seja só cortiça. não pode ser só cortiça. cativaste-me. vamos dançar para sempre. tens as tuas mãos de céu nos meus frios ombros e eu as minhas na tua fina anca. o mundo parece infinito. quero que esta música dure. sinto a tua respiração no meu pescoço e sinto-me em casa. cativaste-me. não pode ser só cortiça. - fecho os olhos e o nosso som desaparece mas ainda tenho a tua alma caída no meu corpo. ainda te tenho, ou talvez nunca te terei. tenho medo, não vás embora. não pode ser só cortiça. diz-me que és mais. sinto conforto nos teus olhos e a tua face rosada marca algo nas minhas mágoas. de repente estou lúcida, que poder que tens em mim. não pode ser só cortiça. - falamos mas não controlo as minhas cordas. oiço-te, vejo-te, cheiro-te, sinto-te, não quero que isto acabe, não te vás embora ou leva-me contigo. não pode ser só cortiça. já pinto os teus lábios no fundo da minha mente. cativaste-me, mas não quero estragar tudo. hei de te beijar. sei que isto não é só cortiça."(Janeiro 2020)

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